Imagino clãs em deslocação, atravessando a planície indo-gangética com rebanhos e parcos pertences. Na cabeça dos xamãs, uma parafernália de material “sruti” (revelado): mantras, invocações, entidades naturais aliadas e inimigas, sombras e penumbras que apoquentam o ser, ameaças de regresso ao fim da noite dos tempos quando todas as coisas regressam a Brahma ou, pelo contrário, auroras radiosas quando tudo é devolvido à luz e o novo dia começa, e a busca incessante e calma continua. Imagino pequenos objectos de madeira, produto do mais escrupuloso e ióguico projecto de design industrial duma qualquer Bauhaus com sede em Meru; pequenos objectos de oferta do fogo ao fogo, da água às águas exangues de um Ganges que ainda não se chamaria assim, de oferendas de manteiga para temperar os cogumelos - Soma que tornam líricas e atormentadas as invocações de deuses sem silhueta. Imagino o mistério quando, no auge da monção, um relâmpago incendeia a pradaria e Agni, soprado por Vayu, empurra esta caravana para terras e abrigos impuros, causando consternação e profunda tristeza nos clãs. Imagino a invenção de mantras e a recordação de outros tão longínquos que o som se materializa em quadrado desenhado no chão e o Oriente é propiciador de purificações demoradas e sentidas. Imagino a inquietação dentro das auroras prolongadas, no limbo dos crepúsculos misteriosos, quando o Sol se faz Lua e os animais se aquietam mortalmente. Imagino que atravessam um rio e que o povo amedrontado paralisa a sua marcha até que o Sol volta a viver e ninguém sabe para onde foi a Lua e os pássaros gritam de novo.
Imagino que se cruzam com muitas outras gentes, com muitas outras línguas que acampam longe mas suficientemente perto para mostrarem os cavalos e as vacas espantando autóctones dravídicos que, por sua vez, inventam também novos rituais. Purificam-se quando chegam, purificam-se quando partem e escrevem na memória novas palavras, novos ritos, novas formas de protecção. E fazem-se ao caminho.
Lindissimo... obrigado pela partilha deste texto e desta visão tão clara onde se fundem, perfeitos, o tempo e o espaço, numa paisagem presente, feita de imaginário e realidade.
ResponderEliminar