domingo, 19 de abril de 2009

Jaiselmer

Deserto do Thar, encravado entre a Índia e o Paquistão.
Fronteiras nebulosas de areia dançam na linha do horizonte
embriagado de calor. A planície ganha dimensão mítica à medida
que avançamos nesta recta interminável de asfalto,
a caminho de uma cidade que nos garantem que existe.
Autocarro indiano, “super de luxe”.
Nos altifalantes, o último “hit” de Bombaim, muitos decibéis acima
do que pensaríamos ser suportável. Os olhos invejam a paleta de cores que veste os clãs do deserto, os brincos e pulseiras de velha prata, os turbantes, o gesto decantado e apenas essencial, o sorriso.
Cada paragem ao longo da estrada, refresca a cor e
o som interiores deste autocarro cinematográfico:
vermelhos que vibram imóveis e silenciosos;
coxia inundada de texturas de pano, barba negra, olhos brancos,
vivos de ouro pontuando a silhueta; mãos tatuadas
de significantes antigos de fertilidade e protecção recortam,
no ar, a palavra.
A luz reverbera. O olhar semicerra-se ainda mais.
Súbito, o deserto organiza-se em colina-cidade amuralhada
e compacta, ocres construídos, rendilhados de sombra: Jaisalmer.
No passado, cruzavam-se aqui as rotas das caravanas
que comerciavam entre a Índia e a Ásia Central.
A cidade enriqueceu e desenhou arquitecturas douradas
de calcário finamente esculpido. O crescimento do comércio marítimo
e a consolidação do porto de Bombaim, levaram a cidade ao declínio.
Mais tarde, a separação do Paquistão, o encerramento das estradas
de comércio com este país após a II Guerra Mundial e secas persistentes, pareciam condenar Jaisalmer ao desaparecimento.
Nos anos 1965 e 1971, com o eclodir das guerras Indo-paquistanesas,
foi reconhecida a importância estratégica do sítio
o que proporcionou a construção de novas estradas,
a electrificação e a ligação via férrea com o Rajastão e,
deste modo, com o resto da Índia.
Deixar-se ir atrás dos turbantes coloridos pelas ruas de pedra
sobre pedra, ocre amarelo sobre ocre amarelo,
onde só a profundidade dos volumes e sombras
dá visibilidade às formas; seguir as braceletes infinitas
nos braços da mulher cor de anil; acocorar-se para tomar chá
na loja obscura e fresca, cheia de luz do jornal do dia;
sentar-se e observar o olhar ruminante dos camelos,
passo de dança, carga pesada, incontáveis trilhos no caminhar.
Cidade circular e murada, projectada por arquitectos alucinados
que desenharam a pedra como tecido fino.
Na austeridade do deserto, a luxúria da escultura ofende o olhar.
Cidade táctil, paredes adoçadas pela mão e pelo vento, gente amiga.
Jaisalmer está organizada em dois pisos.
No andar de baixo, a troca, o mercado, pequenas lojas e bazares,
o barbeiro, peles e curtumes, joalharias, tapetes e mantas,
os Correios e a Administração Pública.
No andar de cima, mais pequeno, o sagrado e o senhorial.
É aqui que se situam as grandes casas, os templos Jainístas e Hindus
e o poder do olhar sobranceiro e em todas as direcções,
sobre a plana paisagem do deserto.
Encostados às paredes exteriores da cidade, as castas intocáveis,
os “filhos de Deus” de Ghandi, os ofícios impuros dos trabalhos
das peles dos animais, os ofícios da morte.
Nos rostos, a tensão calma da sabedoria do deserto
e o caminho das estrelas que, à noite, explicitam o saber medieval
de que a Terra é, de facto, o centro do Universo.
Perder-se em Jaisalmer é escrever, da porta dos Correios,
postais aos amigos; cola branca e espessa que
cola os dedos à paisagem.

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