quarta-feira, 18 de novembro de 2009

O Povo em três capítulos — Capítulo II

O agente Por Motivos de Ordem Técnica (a partir de agora MOT), começou por procurar casa junto de uma estação de Metro. Não foi fácil mas lá conseguiu arranjar um pequeno duas assoalhadas próximo da estação de Amadora Este Colégio Militar Luz. Pré comprou bilhetes, recargas de passe, uma mochila e preparou-se para passar claustrofóbicos dias. Habitualmente era agente de superfície mas esta missão subterrânea ia permitir-lhe uma promoção e, por isso, valia a pena o sacrifício. Começou por estudar as horas de ponta e os fluxos humanos na estação do Marquês de Pombal. Fotografou, entrevistou, analisou, anotou, fez desenhos esquemáticos, diagramas que enviou para a sede. Esperou o correio diplomático com algumas indicações rigorosas para poder operar no terreno com alguma base teórica. No fim do segundo mês, recebeu dois relatórios codificados provenientes de duas das mais famosas universidades do seu país. A conclusão era unânime: apenas a teoria do caos explicava, ainda que incompletamente, o movimento de passageiros e o desenho da estação do Marquês. Era, segundo os peritos, uma obra muito avançada e seriam precisos alguns anos de investigação no domínio da física quântica para encontrar um modelo plausível e compreensível para aquele projecto. Até lá o agente deveria fazer investigação menos fundamental e percorrer as várias estações de modo a obter dados para conclusões mais mensuráveis. Assim fez MOT e foram estas as suas conclusões:
O povo do metro caracteriza-se pela sua postura parada e meditativa do lado de fora e do lado de dentro das carruagens onde constitui uma barreira intransponível de energia primitiva. O povo do metro não se mexe, desloca-se parado, a carruagem que se mexa. Assim sendo não faz mais que seguir as mensagens publicitárias – nós levamo-lo a todo o lado. O agente MOT, por várias vezes, não conseguiu descer na estação onde queria porque um muro da tal energia primitiva, impedia de o fazer e, não querendo ser mal educado empurrando blocos de pensamento profundo, preferiu descer na seguinte o que, diga-se de passagem, prejudicou o seu estudo. O povo do metro lê o Metro o que dá uma grande unidade de estilo neste mundo subterrâneo e torna profundas as referências superficiais. O povo do metro, quando tem espaço, o que vai sendo cada vez mais difícil, gosta de estender o sapato para o banco da frente, introduzindo deste modo um cromatismo mais viscoso e orgânico nos tecidos industriais e pouco amigáveis dos bancos. São pequenas performances sempre agradáveis, sempre de vanguarda. O povo do metro é artista. O agente MOT fotografou vários conjuntos pictóricos murais grafitados de profundo significado artísticósemânticósimbólico. Alguns destes exemplos ilustram a capa do seu relatório de investigação e já circulam na Net, ainda que contra a sua vontade. Destaco dois: “esta é a minha assinatura fo...-se” e, “esta é a minha outra assinatura fo...-se”. Os outros podem ser pesquisados em www.fabioamavanessa.org. Nas centenas de viagens que o agente MOT realizou, observou a grande preocupação que o outro povo do metro tem com as escadas e tapetes rolantes. Para não se avariarem estão sempre a ser reparados o que prova o respeito deste povo pela conservação das suas coisas. Para o estudo do agente MOT, este facto, prejudicou-o porque assim não foi possível tirar grandes conclusões sobre o funcionamento destes equipamentos. Observou ainda aquilo a que chamou sinergia construtiva e que consiste no aproveitamento de muitos corredores de acesso às estações para testes de aerodinâmica. As companhias aéreas e os construtores de automóveis do país instalam aí os seus produtos para medir as turbulências causadas pelos túneis de vento e fazerem testes científicos de resistência de materiais, tal é a corrente de ar nos locais. Uma outra coisa que animou o agente MOT neste estudo foi o facto de haver música em todas as estações. E à medida que as carruagens se aproximam, música cada vez mais alta...eles pensam em tudo concluiu o agente. No seu país a defesa do silêncio é uma política de estado, transformando as casas, as ruas, os transportes em algo sem interesse parecido com bibliotecas. O capítulo final do relatório do agente MOT, recebeu os mais rasgados elogios da sua hierarquia pela sagacidade, sensatez, profundidade e pontes para o futuro que a sua análise revelou. Refere-se ele ao desenho da rede metro e ao facto de esta rede não comunicar com o aeroporto na cidade capital do país. Segundo as conclusões do agente MOT, ligar o metro com o terminal de aviões revela-se nefasto e desaconselhável. Quando assim acontece, caso das outras capitais europeias, o risco de atentados aumenta exponencialmente; os passageiros que vêm do ar, sujeitos a uma determinada pressão atmosférica quando encaixados em carruagens subterrâneas podem sofrer embolias, sendo que o contrário é igualmente verificável; a corporação taxiaeroporto, SASR (sociedade anónima sem responsabilidade), iria à falência, aumentando o desemprego e a crise; ir do aeroporto à baixa de Lisboa não passando por Cascais revelaria falta de visão turística e, como tal, nacional. Assim concluiu e bem, o agente MOT.

1 comentário:

  1. Muito bom, adorei essa explicação "os passageiros que vêm do ar, sujeitos a uma determinada pressão atmosférica quando encaixados em carruagens subterrâneas podem sofrer embolias", entre outras.
    Agora vou à parte 3.

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