sábado, 21 de novembro de 2009

O Povo em três capítulos — Capítulo III

Coube ao agente SCUD a tarefa mais espinhosa: o povo da estrada.
Para analisar o povo da estrada é preciso andar na estrada e, para isso, comprar um carro. E aqui começa a saga: que carro comprar? São todos oferecidos. Alguns só se começam a pagar 5 anos depois. Os juros são transformados em viagens aos trópicos, relógios ou langerie. O agente SCUD estava confuso e a sua primeira conclusão foi que, neste país, só não tem carro quem não quer porque tudo são facilidades e os vendedores até têm alguma relutância em aceitar o nosso dinheiro. Mas, finalmente, e com o acordo da sede, lá se decidiu adquirir um Tuga RVSX500TDPLUS+SPORT carro relativamente económico, pagável em 500 meses, com o IVA convertível em acções do Tesouro. A única desvantagem eram os extras: pneus, bateria e carburador tinham que ser pagos à parte e a pronto. Mas enfim, a sede lá desbloqueou algumas verbas da venda de património militar e tudo se compôs.
Numa bela manhã o conjunto SCUD - Tuga RVSX500TDPLUS+SPORT, fez-se à estrada.
O agente SCUD ligou o rádio e começou a gravar, para análise futura, o programa sobre o trânsito. Espantado percebeu que aquela linguagem cifrada era seguramente proveniente dos serviços de contra espionagem do país para lhe dificultar a tarefa. Gravou o programa para ouvir numa reunião, que imediatamente marcou com os seus colegas MOT e ACUT, deixando para tal uma mensagem numa estação de serviço junto à bomba do gasóleo EcoPlusMaisMais, conforme previamente acordado. Ainda não seria hoje que a estrada o embalaria, resmungou contristado o agente SCUD.
Extracto da gravação efectuada nesse dia:”...da a4 para a a5, da vci para a crel, da crel para o ic8 e do ic8 para o ip5, do ip5 para a cril, da cril para o túnel do grilo onde há nevoeiro. A Norte da ic19 para a 25 de Abril, de Bartolomeu Dias para a Vasco da Gama, da Vasco da Gama para a a1...
Os 3 agentes ouviram repetidamente esta gravação, de trás para a frente, da frente para trás, em baixa velocidade, com eco, sem eco e nada. Pensaram para si que este país tem uma contra espionagem que alto lá com ela! Prolongado silêncio quebrado pelo agente SCUD que disse que o melhor era mandar a gravação codificada pelos canais apropriados e esperar uma decifração. Até lá, este agente, limitar-se-ia a circular nas auto estradas não se arriscando a frequentar outras vias por demasiado perigosas e, seguramente, vigiadas. Despediram-se com o compromisso de não se voltarem a reunir por ser demasiado perigoso e podendo pôr em risco a missão.
Algumas notas de asfalto do agente SCUD:
O povo da estrada não estaciona, pousa delicadamente os automóveis em cima do passeio.
O povo da estrada cruza as passadeiras depressa pedindo desculpa aos peões assustados. O povo da estrada é delicado.
O povo da estrada não apita, usa o claxon às 4 da manhã para o amigo vir à janela ver o último modelo de telemóvel. O povo da estrada não gosta de passar à frente de ninguém por isso fica numa fila interminável quando pode fazer duas. É também por isso que o povo da estrada não gosta da Via Verde mas ocupa essa via porque gosta de partilhar o tempo de espera.
O povo da estrada gosta de se colar à traseira do automóvel da frente. É um modo envergonhado de expressar os seus apetites sexuais.
O povo da estrada é lascivo mas tímido.
O povo da auto-estrada, obedecendo escrupulosamente ao conceito de prioridade à direita, anda na faixa da esquerda mais lentamente.
O povo da estrada conhece e cumpre o código.
O povo da estrada não usa os piscas para poupar energia que tanto dinheiro custa ao país. O povo da estrada adora parar intempestivamente de qualquer maneira e em qualquer lugar para comprar melões e cebolas mais caros do que os que se vendem na sua rua.
É uma maneira discreta e sábia de ajudar a PAC e de testar a atenção de quem vem atrás.
O povo da estrada não gosta de morrer em casa, isso é para maricas, mas sim com as trombas no airbag, o pé no ABS e a mão no telemóvel.
O povo da estrada é muito comunicativo.
O agente SCUD releu pela quinta vez a missiva codificada proveniente dos seu serviços:
“Vasco da Gama e 25 de Abril sabemos o significado embora aqui não se aplique. As restantes palavras armadilhadas permanecem desconhecidas e perigosas. Abortar missão”
E foi assim que, por motivos de ordem técnica, os 3 agentes foram forçados a regressar ao seu país.

Que me desculpem os meus amigos que apanham a azeitona que vão à cortiça e que plantam as abóboras mais lindas do Mundo. Cerca de 70% da nossa população vive nas cidades. Havia um quarto agente, confesso, o agente Orvalho mas, apaixonou-se pelo campo e desapareceu nas neblinas, por isso não temos o seu relatório.
FIM

2 comentários:

  1. Fernando
    Parabéns por esta história do Povo em três capítulos. Quanto ao agente Orvalho, se calhar foi o que teve mais sorte. Bom para ele, mas nós é que ficamos sem o 4º capítulo.
    Um abraço

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  2. Obrigado pelos comentários. Confesso que, nas minhas idas ao campo, tenho perguntado pelo agente Orvalho mas até agora nem rasto. Vou, no entanto, continuar a procurar porque me apetecia escrever um quarto capítulo. Um abraço

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