quarta-feira, 25 de março de 2009

Geografias

Caros leitores/comentadores deste blog em peregrinação por terras da Índia:
Primeiro que tudo obrigado por me lerem. Não tenho respondido aos vossos comentários talvez erradamente, não sei.
Por razões várias vou antecipar a minha viagem de regresso. Esta Índia que me visita há vinte anos vai ficar de novo, suspensa. Tenho na bagagem alguns textos que gostaria de publicar ainda que, a ausência de geografia da net, possa convencer os leitores/comentadores de que continuo debaixo de uma jaca a comer pakoras quando, na realidade, já estarei num café em Lisboa. Uma vez esses textos publicados o que fazer com este blog? Mantenho o espaço com outras características? Fecho-o? Aceito as vossas sugestões. Obrigado.

domingo, 22 de março de 2009

Ganges


O bronze e o bordão, ritmam o espaço próximo do açafrão suado na descida para a água.
É a hora da madrugada. Pequenos sóis despontam em archotes de manteiga. Camas de fogo onde repousam flores, cinzas, as almas dos peregrinos.
Danças de mãos em concha restabelecem laços mitológicos. Sobre a água, rituais de panos e corpos molhados ligam o Cosmos às bocas. Preces silenciosas saturam as paisagens ribeirinhas e os corvos riscam desenhos de dor. O sândalo, incendeia-se em libertação para não voltar a renascer.
A pancada no crânio inicia o caminho da alma.
É ainda a hora da madrugada.
Da varanda sobre o Ganges irrompe o disco solar imenso, incansável, poderoso. É a hora barroca. Começa mais um dia na cidade da luz.

sexta-feira, 20 de março de 2009

Kashi, Banaras, Varanasi – última parte

Camadas do nosso self que pairam no ar à nossa volta
e perturbam a visão e o discernimento deste real;
camadas que precisamos de apagar para poder ver,
entrar em comunhão com o real, fazer darshan, como um hindu que,
ao visualizar a divindade passa a ser a própria divindade.
Em Banaras, quando se olha o Ganges, rio sagrado,
cemitério de vacas, homens santos e crianças, que aqui corre de Sul para Norte ao contrário dos outros e do resto do seu percurso, quando se olha este rio que, imagine-se, tem golfinhos, não se entende como tanta gente toma banho ritual e saúda as águas em preces silenciosas e tão simples.
Na nossa terra o Sol põe-se do outro lado do mar.
Aqui, nasce do outro lado da água.
Quando este Sol doura as escadarias de pedra e, a imponente arquitectura que bordeja o rio faz luz nos olhos dos peregrinos e conquista a sombra da morte, aí percebemos Kaxi a luminosa, onde se vem morrer para não voltar a renascer.
Todos os dias Banaras renasce diante de nós surpreendentemente e, todos os dias, outras camadas se interpõem entre os nossos olhos e a luz. Todos os dias os corpos se desmaterializam lentamente no fogo das cremações e a construção do vazio, faz-nos pensar. Namasté Banaras, perante ti...inclino-me. Agora vou deixar-te, penso que pela última vez, depois de uma ensurdecedora corrida de táxi até ao Aeroporto de Baratpur e dentro, guardo um banco de imagens e de sensações. Muitos momentos irrepetíveis, telas sucessivas do mais puro expressionismo, mostruário da vida e da dor, lições de paciência e uma mistura dilacerante de alívio e saudade.
Sei que ainda te envolvem muitas camadas de outros reais mas
fico por aqui. Corre-se o risco, neste lugar, de ficar
para sempre à procura de entender.

terça-feira, 17 de março de 2009

Vêm aí as russas

Dá, dá...spaciba, spaciba!Tovarich já não se ouve. Não estão a ver umas belas, brancas e grandes russas, cheias de anéis de ouro e biquínis à moda com boum boum escrito nas nádegas, tratar por camarada a sua sócia do bordel russo aqui de Candolim. A gerente da esplanada pergunta se querem lobster. “Ó matche?”, pergunta Pedro o Grande. A gerente repete que é em dólare. “Ó matche?”. Tragaláalagosta, presumo que foi dito. Por todo o lado se ouve falar, fumar e beber russo. Não fora a temperatura da água diria que estávamos no Cáspio. Há lojas aqui na zona com a sinalética informativa já em alfabeto cirílico. Os habitantes de Goa manifestaram-se recentemente contra a aquisição de propriedade por estrangeiros. Deve-se isto ao facto de uma grande quantidade de terras e casas estarem a ser adquiridas com dinheiro duvidoso por nacionais russos. O grande mercado sexual aqui em Goa é a prostituta russa. Para os indianos o máximo é passarem uns momentos na cama com uma mulher russa ainda que tenham que pagar em moeda estrangeira. Elas já fazem o “trottoir” ou, melhor dito, a terra batida, aqui na zona. Os chulos russos são um verdadeiro estereótipo: dois metros de altura, dois de largura, cabeça rapada, uma grande barriga. Está esta costa de Deus entregue à perdição, dizem os padres do seminário de Rachol. Não há crucifixos nem velas suficientes a arderem nestas igrejas que protejam os católicos daqui destes novos ícones(as) russos(as). A alminha de Afonso de Albuquerque carpindo, lamenta o facto de, no seu tempo, não haverem piratas russas.

segunda-feira, 16 de março de 2009

Kashi, Banaras, Varanasi - Parte2


Camadas de gente em pulsão vital, camadas que retiramos
progressivamente até chegar ao rosto que olha de frente, nos olhos.
Aqui olha-se nos olhos, despudoradamente, naturalmente
e sorri-se. Esta troca simples emociona. Camadas de espiritualidade encostadas a uma árvore banian em forma de tridente de ferro e pote de barro ou lingam de argila, flores e pó de sândalo.
Pedras adoçadas pela mão que as toca, pequenos oráculos, templetes onde não cabe uma pessoa ou a arquitectura religiosa no seu esplendor no templo Vishvanat.
Espiritualidade da “mão esquerda”, na atitude tântrica do aghori que desafia todas as normas, bebendo água nas caveiras que transporta, cobrindo o corpo de cinzas das cremações,
vivendo nos locais mais impuros para fortalecer o seu próprio poder.

sábado, 14 de março de 2009

Kashi, Banaras, Varanasi - Parte 1

Começou o tempo quente em Banaras. Luz e pó, som e fumo. Envolvem Varanasi várias camadas. Camadas de história da história do Mundo que frequentemente subvertem as interpretações dos peritos. Camadas de tempo que “patina” a arquitectura e a oculta, desvendando-a apenas, aos mais persistentes e pacientes. De repente, por trás de uma esquina, esconde-se Kuruksetra, um dos mais belos kunds (lago) de Varanasi. Imundo de lodo e lixo com a dignidade dos locais que sabem da sua importância. Espreita-se por uma porta, tentando não pôr os pés na lama fétida e um pátio interior colunado e rendilhado dá-se a ver na cor dos saris das mulheres sentadas sobre si próprias, à conversa. Estarão assim há mil anos? Azuis pálidos, ocres de sangue derramado na pedra de Chunar, brancos velhíssimos, emolduram o olhar. Um subtil gesto de mão convida a entrar e a ficar.

segunda-feira, 9 de março de 2009

Nigam

Nigam nasceu em Banares depois dos seus pais
terem mergulhado no poço de Tulsi, “trocado de pele”,
atirado a infertilidade Ganga abaixo na direcção do mar.
Nigam devia ter sido chamada mulher da água.
Quando fecha os olhos castanhos, Nigam revê o poço do rio,
a água dentro da água, o silêncio.
Por isso Nigam prefere não dormir.
Quando a cidade descansa, passeia pelas ruas
com dois ou três cães por companhia. Acorda os macacos
com assobios silenciosos, descobre tudo
o que há para descobrir nas ruas de Kaxi, sabe de cor
o que dizem os cartazes de cinema, quando vai chover,
trepa às árvores para acariciar os macacos tontos de sono,
informa os ratos do próximo carregamento de farinha,
induz sonhos maravilhosos aos riquexós-wallas
que descansam em sobressalto pelo dia que se avizinha
e que ficam a sorrir dormindo, depois dela passar.
Se lhe perguntam: - Nigam onde mora o Dr. Kumar, responde:
-É fácil...passando a árvore Banian em Kachauri Gali,
volta-se para Norte depois das três cabras, caminha-se
tanto tempo quanto a formiga acarta o grão de trigo
para casa...depois há três pedras muito lisas e um ninho
de vespas...é aí.
Recebe a manhã com os pés na água;
o sol entra dentro dela e
a claridade repousa-a da noite atarefada.

quinta-feira, 5 de março de 2009

Orvalhos

Agora dei em ler Herberto Helder aqui nos trópicos. Debaixo de uma jaca no jardim, com um sopro de ar quente que adormece os mosquitos, estendo essa escrita pela tarde. “Havia um homem que corria pelo orvalho dentro”, podia ser aqui onde, num momento breve pela manhã, tudo é possível dentro do silêncio. Momento breve entre a inspiração e a expiração e, nesta eternidade, meditar sobre o “homem que levava uma flecha pelo orvalho dentro, como se estivesse a ser caçado loucamente por um caçador de que nada se sabia”. “A faca não corta o fogo” é o último título de mestre Helder e a pintura de Ilda David na capa atira-me para dentro de uma oficina de alquimista. Engordam as palavras do livro neste espaço de corvos, palmeiras, mangueiras e flores indizíveis. Nem precisam de picante. Obrigado FOGO.

segunda-feira, 2 de março de 2009

Mahaxivaratri

Agora em Gokarna, no Karnataka, para participar no MahaXivaratri que culminou nesta Lua Nova de Fevereiro. Xivaratri é um tempo dedicado ao deus Xiva. Nestes lugares sagrados (tirthas), os cultos, a devoção e o movimento dos crentes intensificam-se neste período. Aqui em Gokarna estão montadas várias estruturas para acolher os peregrinos, nomeadamente uma tenda, instalada na praia que pode servir 5000 refeições simultâneas. No templo de Ganesh (o que remove ou coloca obstáculos, deus com cabeça de elefante, filho de Xiva), existe um lingam (símbolo fálico) que tem uma curiosa história mitológica. Ravana, um temível demónio, entregou o lingam a Ganesh enquanto descansava de uma longa jornada. Ganesh, para proteger o lingam deste demónio, enterrou-o quase totalmente. Ravana fez tanta força para o remover que lhe retorceu a ponta. Assim, em Gokarna, existe o único lingam com a extremidade retorcida, sendo objecto de grande devoção. Sete horas em fila de espera junto ao templo de Maheswara (Xiva) para fazer darshan (visualizar o ícone e nesse curto momento ser igual a Deus); oferecer cocos, bananas, colares de flores, pigmentos; tocar o sino, dizer um ou dois mantras, sorrir. Uma amiga perguntava a outros amigos indianos o que estava previsto em termos de casas de banho para acolher tanta gente. Com um sorriso foi-lhe respondido que as casas de banho já existem. De facto, pela madrugada, é possível observar ao longo da praia uma enorme fila indiana de rabos alinhados junto ao mar. Nas próximas semanas, Gokarna não vai ter bandeira azul! Na tarde seguinte à Lua nova, uma grande manifestação popular acontece: um enorme carro de madeira encimado por uma estrutura semelhante a um templo, é deslocado na rua principal de Gokarna enquanto muitos milhares de pessoas lançam bananas contra a cúpula. Apanhar a mesma banana que se lançou depois de ela tocar o templo, é felicidade garantida. Aqui comem-se banana bans, uma espécie de sonho de banana que recomendo vivamente, acompanhadas de uma suit lassie, semelhante a batido de iogurte. Estas coisas só estão acessíveis nos restaurantes populares por isso, é mesmo preciso perder esta nossa paranóia ocidental da higiene e provar as delícias ocultas.